SOBRE DEUSES E HOMENS


Na gênese, no início dos tempos quando ainda não existiam cruzes ou santos, o homem contava com seu corpo, mantinha-o de forma nobre e útil, era o que lhe garantia, juntamente com o intelecto, a consciência da existência. Todos os dias, ritualisticamente, passos largos conduziam o corpo (massa ainda sem polimento. Bruta ainda!) levando-o, instintivamente ao alto da montanha. Lá contemplava o amanhecer.
Quando o primeiro raio de luz tornava-se visível os olhos cansados erguiam-se, o peito pulsava e se agigantava, ali, orando sem palavras iniciava um novo dia. Assim, ainda filho da terra, caminhou e conheceu o mundo, e viu que o mundo era bom e belo, e sabia que o mundo o amava com amor gratuito, que os astros o protegiam e também o amavam. Dessa forma, quando a vaidade ainda não sufocava a essência, antes que inventasse-mos deus, adorávamos o sol, a lua e a terra.
Que Deus poderoso fora o sol! Tão poderoso que nunca se deixou olhar. Quanta proteção e ternura proporcionou-nos a cada amanhecer, quanta jubilosa sensação doou-nos em dias de frio. O sol reinou durante o dia, a Lua, sua amante impossível, foi Deusa e por muitas noites elevou-se serena, ofereceu a proteção materna, instigou a tranqüilidade e paz a seus súditos. A Terra foi mãe, foi Deusa doadora, de suas entranhas gerou-nos e dispôs os alimentos que precisávamos. Alimentou sem pedir nada em troca, amava-nos, despertou a consciência de filhos da Deusa, criou-nos semideuses.
Como filhos de deuses andamos e exploramos o mundo, até que ele ficou pequeno. Em momentos de solidão sentimos um impulso, uma ânsia, e pensamos ser capazes de, acariciando o mundo significá-lo, e assim fizemos: Acariciamos a pedra e dela extraímos o machado, acariciamos os sons e dele forjamos o verbo, acariciamos o calor  que e em troca nos deu o fogo, acariciamos a terra e nela plantamos, acariciamos as cores e com elas nos eternizamos.
 A Humanidade, esta fabulosa espécie criou. Guiado pelo impulso em direção a sobrevivência criou até deus. Inspirado em seu próprio ser físico o homem inventou. Ao inventar, o intelecto envaideceu-nos, e muitos, aos poucos, esqueceram. Não sei! Acho que esqueceram. Sim, muitos de meus irmão esqueceram!
Com  medo do frio e do escuro criaram o fogo e aos poucos perderam a urgência em ver o Deus Sol e foram, lentamente, esquecendo o afetuoso conforto dado pelo poderoso astro ao irromper depois de uma noite de frio e de medo diante da espreita de animais fisicamente mais fortes e de instinto predador aguçado pela fragilidade da irmandade. Quando o calor dos corpos não era mais suficiente buscou o fogo e depois foi capaz de produzi-lo. Quanta potência humana, quanta superioridade o intelecto nos proporcionou. O homem aprendeu a forjar o que precisava para aquecer-se.
Eu não entendia quando esqueceram da Deusa Lua. Era triste demais, era trágico e fatal! De maneira vergonhosa eu, ao orar olhava a Lua, buscando sentido no esquecimento de meus pares. Compreendi quando, um remanescente daquela irmandade me confessou timidamente em tom envergonhado: No princípio estavam contentes, durante a noite, sobre a mansa e protetora luz bendiziam e comungavam com ela, fascinados pela luz das fogueiras que, dia-a-dia se multiplicavam, as pupilas perderam a sensibilidade para a afável luz da Deusa Lua. Amaram, daquele dia em diante a bruxelante tonalidade do fogo.
Assim também foi com a Terra, o vento, as pedras, a água, as folhas e tudo mais! Exploramos  o que amávamos  e aos poucos esquecemos seu amor. Desse momento adiante tornamo-nos humanos, e iniciamos um novo momento, nosso poder de conquista e dominação conduziria-nos, inevitavelmente ao esquecimento de que fomos gerados e mantidos pela natureza e por seus generosos astros.